O Budismo e as Artes Marciais
Não passa
desapercebido para nenhuma pessoa que tenha algum interesse pela cultura
oriental e nem mesmo a um desinteressado turista ocasional, que visita
os países orientais, o fato de que o Budismo se tornou a base do
desenvolvimento da cultura e da ética sócio-religiosa de praticamente
todo o extremo oriente, bem como, especificamente do Japão.
Seria
impossível a qualquer pessoa que tome contato com qualquer aspecto da
cultura japonesa, deixar de notar a influência do Budismo, nos fatos
históricos, na arquitetura tradicional, na literatura, nas artes
plásticas, artes marciais e artes sociais (“Ikebana”, cerimônia do chá,
etc.), bem como na ética social japonesa. Também o folclore e a música
clássica japonesa têm sua marca budista bem viva e até mesmo muitos dos
feriados nacionais japoneses são datas marcadas pelo calendário budista.
Podemos observar também essa influência marcante da cultura
budista na formação sócio-cultural japonesa, em aspetos como a
introdução da escrita ideográfica chinesa (“Kanji”), através dos textos
sagrados budistas (“Sutras”) e também no desenvolvimento e codificação
dos “alfabetos” fonéticos simplificados (“Kaná”). E ainda, em aspetos
éticos, sociais e legislativos, como por exemplo, o fato da primeira
constituição japonesa, elaborada sob os auspícios do príncipe Shôtoku
(573-621), ter tido influência estrutural do “Código de Manu”, de origem
indiana, introduzido no Japão pelos primeiros monges budistas.
Também
no Brasil, o papel do Budismo como fator de união sócio-cultural dos
imigrantes japoneses é marcante em todos os grandes centros de
aglutinação dos japoneses e seus descendentes, influenciando também
outros setores da sociedade ocidental. Podemos perceber isso claramente
em movimentos conhecidos como “cultura alternativa”, que englobam desde a
chamada “medicina alternativa”, artes marciais (muitas, introduzidas no
ocidente sob a forma de esportes) bem como de outras artes, com forte
influência principalmente do Budismo Zen.
Mais especificamente no
campo das Artes Marciais, alguns aspectos precisam ser esclarecidos
para que se tenha uma ampla visão desse conjunto.
Muitos
ocidentais ao tomarem contato com a cultura oriental através de filmes
largamente divulgados pelo cinema e televisão, como os Kung-Fu,
Samurais, Ninjas e etc., acabam tendo uma impressão de que Budismo e
Artes Marciais são inseparáveis e que todos os monges budistas seriam
“experts” nessas artes, o que não passa de pura ilusão cinematográfica.
Mas, ao mesmo tempo, o desenvolvimento das artes marciais do extremo
oriente acabaram por fixar conceitos budistas que vieram a se tornar
inseparáveis da própria conduta de seus praticantes.
Conta-se que
o próprio Buda Shakyamuni, em sua juventude, vivendo ainda como
príncipe do povo dos Shákyas, ao sopé da cordilheira do Himalaia, foi
adestrado nas artes de guerra, como luta corporal, arco-e-flecha,
manuseio de bastão, lança e outras armas próprias de sua época.
Entretanto, após ter atingido sua iluminação aos 35 anos de idade,
pregou sempre um caminho de paz, harmonia e principalmente a
não-violência (ahimsa), conceito este que foi brilhantemente retomado
por Mahatma Gandhi, no começo do século XX, influenciando grandemente o
movimento de Independência da Índia, que até então era uma colônia do
império britânico.
Na China, muitos são os que atribuem a
Bodhidharma (o introdutor do Zen Budismo, nesse país) a criação do
Kung-Fu, mas não existem relatos históricos que sustentem essa tese.
Entretanto, há sim, uma estreita relação do desenvolvimento do Kung-Fu
como arte marcial e o Templo Shao-Lin, fundado por Bodhidharma, e que
mais tarde chegou ao Japão sob a denominação de Shorinji-Kempô.
O
Kung-Fu Shao-Lin e o Shorinji-Kempô são artes marciais que utilizam
basicamente movimentos que imitam o comportamento dos animais em seus
sistemas de combate, mas que antes de mais nada, são sistemas de
unificação do corpo e mente, e de manutenção da saúde física, mental e
espiritual, tendo como apoio, principalmente a meditação Zazen.
Outra
arte marcial largamente difundida na China e praticada em muitos
templos budistas é o Tai-Chi-Chuan, que é de origem Taoísta, mas que,
assim como este último, foi sincretizado pelo sistema budista, nesse
país.
No Japão, o Budismo foi importado da China e da Coréia, sem
trazer esses aspectos marciais. Mas, com o desenvolvimento histórico,
grande foi o número de guerreiros da classe dos samurais que afluíam aos
templos budistas, principalmente das escolas Zen e Jôdo (Terra Pura),
buscando apoio espiritual, e chegou até mesmo a existir uma categoria de
monges guerreiros (Sôhei) em monastérios como os da Escola Tendai.
Assim acabou se dando o nascimento de um conceito japonês de arte
marcial que mesmo hoje em dia é indissociável do Budismo e do Shintoismo
(religião autóctone, ligada à casa imperial japonesa).
Mas como teria se dado essa ligação?
Em
primeiro lugar precisamos lembrar que os guerreiros japoneses estavam
antes de tudo ligados ao conceito de “Dai-Nippon” (O Grande País do Sol
Nascente) e tinham como figura central o próprio imperador que era
considerado descendente da Deusa Shintoísta Amaterasu (A Deusa do Sol).
Sendo o Shintoísmo (Shintô significa Caminho dos Deuses) uma
religião que prega a ascenção do ser humano ao nível dos deuses através
de práticas de purificação física e espiritual, era bastante conveniente
aos guerreiros dos primeiros tempos, mas com o desmembramento do Japão
em feudos e pequenos reinados, muitas guerras internas surgiram e a
classe dos samurais se viu diante de uma situação inusitada: ter que
lidar com o fato da morte iminente, tanto sua como de seus adversários, e
a própria impermanência de todas as coisas, que se lhes apresentava
através das conseqüências das guerras e dos combates. É nesse contexto
que surge o Budismo como uma altenativa para se poder trilhar um caminho
de despertar para a realidade dos fatos da vida e de conforto
espiritual.
Para o Shintoísmo, a morte é um fato impuro. Ao matar
alguém, seja numa guerra ou em combate pessoal, o samurai tinha que se
submeter a complicados ritos de purificação, dentro desse sistema. Já o
Budismo, apesar de ter como uma de suas bandeiras a não-violência, não
faz discriminação entre vida e morte, sendo esses, apenas dois aspectos
da própria existência. São considerados como inseparáveis, assim como as
duas faces de uma mesma moeda ou de uma folha de papel.
Àqueles
que buscavam o Budismo para receber orientação sobre a vida-e-morte, os
monges transmitiam os ensinamentos de Buda e os métodos de meditação,
principalmente o Zazen.
É interessante notar que o Zazen passou a
ser a técnica por excelência dos praticantes de artes marciais, pois
além de levar a pessoa a despertar sua visão interior para contemplar a
Verdade, ou seja, a vida-e-morte assim como ela é, proporcionava uma
tranqüilidade mental e espiritual que se refletia na própria técnica do
guerreiro.
O espírito do Zen passou a permear as artes marciais
na prática. Um praticante de Ken-Jutsu (a arte da espada samurai), por
exemplo, passou a utilizar o esvaziamento de sua mente e de seu
espírito, tornando-se uno, primeiramente em si (corpo e mente), uno com
sua espada (kataná), uno com seu adversário e assim, uno com o próprio
universo. Nesse momento, não há mais matar ou morrer, ou ainda, o
próprio matar torna-se o morrer, e morrer apenas o outro lado da mesma
vida.
Com sua mente una e “vazia” como a própria imensidão do
universo, os movimentos podem se desenvolver sem passar pelo critério da
discriminação intelectual. O espadachim, sua espada e seu adversário
tornam-se um só. O arqueiro, seu arco, sua flecha e o alvo tornam-se um
só. Não há mais separação entre sujeito e objeto e assim as técnicas se
concretizam por si só.
Entretanto, o Budismo prega o respeito
pela vida e tem como um de seus votos principais o “não matar e não
causar mal a nenhum ser vivente”. Como lidar com esse fato se a razão da
vida de um guerreiro é o matar?
Foi dessa maneira que muitos
samurais se recolheram aos templos budistas para meditar e assim buscar
um caminho de libertação desse mundo em que sofremos e ao mesmo tempo
trazemos sofrimentos aos outros seres.
Muitos foram os que se
recolheram aos templos da escola Zen, outros nas escolas da Terra Pura,
almejando alcançar um nascimento, um “renascimento” interior para o
mundo da Vida e da Luz Infinitas.
Com o passar do tempo, as
guerras tomaram outras proporções, armas de fogo muito mais sofisticadas
começaram a ser utilizadas e a própria classe dos samurais foi extinta
por édito imperial, mas o espírito dos antigos guerreiros continua vivo
em muitos templos e “Dôjôs” (local de prática do Caminho), através das
artes marciais.
A palavra Dô que encontramos nos nomes das artes
marciais é um indício disso. Judô, Aikidô, Kyudô e etc. Dô é a leitura
japonesa do ideograma chinês Tao, que dentre tantos significados tem o
sentido de “Caminho”. Um caminho de aperfeiçoamento espiritual, um
caminho de desenvolvimento interior, um caminho de unificação com o
Absoluto.
Assim sendo, o Caminho do Guerreiro (Bushidô), se
transforma no próprio trilhar do Caminho para a Iluminação (Butsudô),
que é o Caminho pregado pelo Buda.
Budô (武道) e Butsudô (仏道) podem parecer para quem é
ocidental, mas os ideogramas são bem diferentes. O primeiro Budô, o Bu é
de Bushi: guerreiro, e no segundo é de Buda.
Rev. Wagner Bronzeri (Shaku Haku-Shin)
Monge budista da Escola Jôdo Shinshû, ramo Ôtani.
Templo Budista Apucarana Nambei Honganji.
Wesak - 2003 www.dharmanet.com.br/honganji